Fomos encontrar Maria de Jesus Alves sentada na sala do filho mais novo, entregue à leitura, um dos seus hábitos mais assíduos, e com um ar tão jovial que as repórteres hesitaram entre felicitá-la pela celebração dos cem anos de vida, ou pedir-lhe com delicadeza que fosse chamar a mãe, pois com certeza não seria ela, a quem dificilmente daríamos 80 anos de idade, a senhora centenária que seria objecto da nossa reportagem.
Magra e pequena, com o rosto vincado pela passagem dos anos, os olhos brilhantes, atrás dos óculos que lhe auxiliam a leitura, poderiam perfeitamente pertencer a uma jovem de 20 anos, e dificilmente se acreditaria que a sua dona nasceu em 1909, na freguesia de Ruivães, em Vieira do Minho.
Quando lhe demos os parabéns pelos cem anos, comemorados no passado dia 19, os seus olhos brilharam ainda mais, ao recordar a festa que juntou amigos e familiares, alguns vindos expressamente do continente ou até do estrangeiro: “Fiquei muito satisfeita pela festa que me fizeram. Não contava com isto, mas foi uma alegria estar com a família e pessoas amigas. Gostei muito”, confessou-nos, dona de uma lucidez invejável. Incapaz de conter as emoções ao lembrar o dia do seu aniversário, Maria de Jesus faz questão de agradecer a todos os que dela se lembraram: “nunca pensei ter pessoas tão amigas”, diz.
As voltas da vida trouxeram Maria de Jesus e o marido para o Faial há cerca de 20 anos. Os dois filhos, Fernando e Manuel, vieram para os Açores trabalhar, casaram e acabaram por ficar por cá.
Hoje, Maria de Jesus divide os seus dias entre as casas de ambos os filhos, e sente-se feliz rodeada pela sua descendência: tem nove netos e quatro bisnetos, o mais velho dos quais com 17 anos. Ainda se recorda das viagens de avião entre o continente e o Faial, que a traziam de férias à ilha azul, antes de aqui se fixar definitivamente. “O meu marido tinha medo de andar de avião, mas eu não; até gostava. De todos os meios de transporte que já andei o meu preferido é o avião”, conta-nos.
Já não vai a Ruivães há oito anos, principalmente porque, com o passar dos anos, as ligações à terra vão-se perdendo, com o desaparecimento dos entes queridos que lá deixou, como as duas irmãs, ambas já falecidas.
Quando lhe pedimos para nos contar um pouco da sua vida, a resposta é pronta: “Ah meninas, a minha vida, se fosse a contá-la, era um romance!”. Casou aos 25 anos, com um jornaleiro dos serviços florestais, onde ela própria começou a trabalhar, e se manteve por 26 anos. Desses tempos, recorda a dureza do trabalho: “fazia todo o serviço, era uma escravidão. Naquela altura a vida era mais difícil”, lembra. No entanto, recorda com saudade o trabalho na terra, que continuou a fazer quando veio para os Açores: “tinha uma horta que era um encanto”, conta, cheia de orgulho. Também fazia crochet e orgulha-se de ter sido uma boa doceira. “Íamos às festas vender os doces. Amassávamos o centeio e fazíamos corações, cãezinhos, correntes… As crianças adoravam. Éramos pobres, e lembro-me de a minha mãe nos dizer: ‘Oh minhas filhas, trabalhamos para não ter fome’”, recorda.
O seu século de vida permite-lhe dizer que viu o mundo mudar. Momentos do quotidiano que parecem retirados de contos de fadas de tempos remotos, como o correio a chegar em carroças ou a necessidade de se servir da luz da candeia, para Maria de Jesus estão ainda bem presentes na memória.
Apesar da intensidade e da dureza do trabalho, Maria de Jesus não hesita em dizer que é de poder trabalhar que sente mais saudades. É que, embora seja dona e senhora de uma aparência e lucidez invejáveis, as pernas e os braços teimam em lembrá-la de que já tem cem anos, e chegou a altura de descansar de uma vida de trabalho. “Até parece mal dizer, mas a minha vida é quase comer e dormir”, conta, em jeito de brincadeira. Para passar o tempo, gosta de ler, hábito que cultiva há muitos anos, mesmo quando a vida era tão madrasta que as horas de trabalho pareciam durar mais que as do próprio dia: “sempre tive um bocadinho de vagar para ler e para orar”, conta. “Quando trabalhava não havia tanto vagar, fazia a minha oração mais levezinha”, confessa. Hoje tem mais tempo, que não gosta de desperdiçar com revistas nem com a televisão. Os livros de religião são os seus preferidos, e Maria de Jesus mostra-se uma religiosa convicta, atribuindo a Deus grande parte do mérito nas cem velas no seu bolo de aniversário. Continua a ir à missa, apesar de necessitar do apoio dos filhos e netos.
Apesar de já não poder trabalhar a terra como queria, Maria de Jesus continua a fazer algumas coisas. Foi ela quem plantou os manjericos no São João, e uma das netas trouxe-lhe do Pico uma planta para cuidar. Outro dos hábitos que ganhou ao longo dos anos, para além da leitura, foi o de descansar um par de horas após o almoço. No entanto, dispensou de bom grado a sesta para uns dedos de conversa animada com as repórteres, que tentaram descobrir o segredo desta jovial longevidade de que Maria de Jesus parece ser portadora. “Usa algum creme especial?”, perguntámos, incapazes de conter a típica curiosidade feminina. E a nossa interlocutora, sempre bem-disposta, não hesita em partilhar connosco a marca a que se manteve fiel durante toda a sua vida. O “segredo” permanece só para nós, mas descobrimos que Maria de Jesus não se isenta da dose de vaidade necessária a qualquer mulher: arranjar o cabelo todos os meses e colocar algumas jóias todos os dias é algo que não dispensa. Olhando para Paula, a neta que se juntou a nós durante a conversa, diz com orgulho: “quando era nova era tal igual à Paula”.
Quanto à alimentação, Maria de Jesus diz gostar de praticamente tudo, à excepção de carne de vaca. A tensão arterial está sempre alta, queixa-se, e não há comprimidos que a façam descer. Palavra puxa palavra, ficámos a saber outro dos seus segredos: “há hora da refeição bebo sempre meio copinho de vinho”, confessa. Fernando, o filho mais velho, confirma, e acrescenta que um bom tinto maduro é o vinho que merece a eleição da mãe.
Depois de toda a conversa, ficámos a conhecer aquele que é, para Maria de Jesus, o verdadeiro segredo da sua longevidade, que é, afinal, bem simples: a família reunida à sua volta. “O amor da família é que me faz viver. Se uma pessoa não se sente estimada não tem gosto de viver, e é este convívio que eu acho muito importante”, confessa.
No final, acompanhou-nos à porta e agradeceu a nossa visita. Quanto a nós, agradecemos as histórias e fizemos-lhe um pedido: que, para o ano, possamos partilhar mais um pouco do que Maria de Jesus tem para contar, com o pretexto da comemoração dos seus 101 anos. Com a vivacidade com que nos recebeu e a lucidez com que connosco conversou, será, com certeza, um pedido fácil de aceder.
FOTO: SUSANA GARCIA
Sem comentários:
Enviar um comentário