sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Genuíno Madruga

A saga do pescador


A 25 de Agosto de 2007 o velejador Genuíno Madruga partia das Lajes do Pico, sozinho, a bordo do seu Hemingway, com um objectivo pela frente: fazer a sua segunda viagem de volta ao mundo, desta feita propondo-se fazer algo que nenhum português antes havia feito: passar o Cabo Horn, no sul do Chile, navegando do Atlântico para o Pacífico.

Como diz o poeta – e bem a propósito, já que falava das conquistas marítimas dos portugueses - “Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce”, e bastou o sonho para a conquista da realidade, com Genuíno a passar o Cabo Horn no dia 24 de Janeiro de 2008. A comunicação social chamou-lhe “herói do mar”, e foi assim que se sentiu.

No entanto, desta viagem, que terminou nas Lajes, a 6 de Junho passado, ficam também outras boas recordações, como a passagem por Timor e pela Argentina, e ainda lembranças mais negras, como o mau bocado que passou ao largo do Brasil, e que custou ao Hemingway, seu velho companheiro, o mastro.

Agora, as aventuras de volta ao mundo em solitário vão ficar para trás, garante, mas não sem antes serem perpetuadas em algo mais fugaz que as memórias, já que pescador está a preparar um livro sobre esta sua última façanha.

Em entrevista, Genuíno Madruga falou sobre a sua viagem, e sobre os planos para o futuro.


Por que razão quis fazer uma segunda viagem?

Vem na sequência da primeira. Além disso, conheci o primeiro homem que passou o Cabo Horn em solitário navegando do Atlântico para o Pacífico, Marcel Bardiaux. Conheci-o aqui na Horta, e fiquei sempre com as conversas que tivemos na memória, e fiquei com a ideia de que, se ele tinha conseguido passar ali, porque é que eu não havia de passar? Só precisava de um barco em condições. Organizei o barco, melhorando sobretudo a segurança, e no dia 25 de Agosto de 2007 saí do Pico em direcção ao Cabo Horn.

O que me moveu foi fundamentalmente o facto de não me sentir inferior a quem quer que seja. Se os outros conseguem eu, se tiver as mesmas condições, também consigo.


Mas passou alguns momentos complicados nesta viagem… Em quais se sentiu mais receoso?

Foi aquela zona ao passar o Cabo Horn, até Puerto Monte, no Chile. É a zona mais complicada de todas, e felizmente por lá tudo correu bem, porque qualquer problema ali poderia ter sido muito complicado. Depois, quando julgava que estava a chegar a casa, duas mil milhas depois de sair do Brasil, fiquei outra vez sem mastro. Em minutos. Foi uma situação muito complicada.


Como foi? Lembra-se bem desse dia?

Lembro-me de todos os segundos. É difícil de descrever o que se passou, mas posso dizer-lhe que, se há Inferno, creio que já passei por lá. Ainda por cima a situação ocorreu de noite, por isso apanhou-me ainda mais de surpresa. Estou a falar de ventos fortíssimos, com rajadas a muito mais de 100km/h, e chuva muito grossa, relâmpagos por cima da cabeça… Tudo isto numa questão de minutos.


Por algum momento pensou que não sairia vivo dessa situação?

Sempre pensei que os meus conhecimentos seriam suficientes para passar aquela situação. Sempre pensei que aquilo que aprendi durante a minha vida, no mar, na pesca, seria o suficiente para ultrapassar situações como aquela. Mas é preciso muito cuidado e cabeça fria, sobretudo. Às vezes um simples erro é a morte do artista. Fiz aquilo que era possível com as condições que havia. Depois cheguei aqui com oito dias de atraso em relação à data prevista, mas cheguei, e isso é que é importante.


Ao tornar-se o primeiro português a dobrar o Cabo Horn em solitário do Atlântico para o Pacífico, chamaram-lhe “herói do mar”. Foi assim que se sentiu?

Creio que, não só a passagem do Cabo Horn, mas toda esta segunda viagem, foi importante não apenas para mim mas para todos os que a acompanharam e que, na realidade, estiveram a navegar comigo pelo mundo. Cada vez me apercebo mais de que assim foi, pelas conversas que vou tendo com as pessoas. Existiu a consciência de que estava a fazer qualquer coisa que poucos fizeram. A nível mundial, sou a décima pessoa a passar ali em solitário, e o primeiro português, e tenho a certeza que muitos dos navegadores que afundaram ali naquelas águas também eram bons marinheiros, senão não se tinham aventurado até àquelas paragens, mas não conseguiram passar. Ali, qualquer manobra mal feita, qualquer erro, era fatal. Era um cenário muito complicado, com correntes muito fortes. Quando ia passando por ali, e mesmo depois, apercebi-me de que talvez aquilo que estava a fazer tinha uma importância maior do que o que estava a pensar. Através da Internet, fui seguido por milhões de pessoas, recebi e continuo a receber mensagens de todo o mundo, desde a Austrália à Noruega, aos Estados Unidos… Na Argentina foi recebido pelas mais altas individualidades.


Foi um verdadeiro embaixador dos Açores?

Penso que sim, principalmente junto dos emigrantes, mas não só. Creio que as pessoas reconheceram este feito, principalmente aqueles que conhecem o mar, e tem consciência da dificuldade desta viagem.


Para além dos momentos difíceis, devem ter ficado na sua memória outros momentos inesquecíveis, não pelo perigo e dificuldade, mas por boas razões…

Sim, e eu prefiro falar desses. Destaco o acolhimento que tive em Buenos Aires, na Argentina, pelos nossos emigrantes; a chegada a Timor, onde fui recebido de forma triunfal…


Até porque foi o primeiro português a chegar em solitário a Timor, desde que é uma nação independente…

Exactamente, e isso foi muito marcante nesta viagem. O Dr. José Ramos Horta teve a amabilidade de me receber no seu gabinete e depois veio a bordo do Hemingway. E ofereceu-me um presente muito especial, que guardo com todo o cuidado, e ainda não sei bem que destino lhe hei-de dar: trata-se de um terço, que tinha recebido da Irmã Lúcia. É um presente carregado de simbolismo, e é uma prova de como a minha passagem por Timor foi extraordinária.


A pirataria, na ordem do dia actualmente, também foi uma preocupação da sua equipa, até porque o Genuíno navegou em águas conhecidas por apresentarem esse perigo. Que precauções foram tomadas?

Sempre houve zonas complicadas em relação à pirataria, como é o caso do Mar da China, da Indonésia, do Golfo da Guiné, entre outros. Quanto a cuidados, tento evitar o mais possível essas zonas. Quanto tenho inevitavelmente de por lá passar tomo precauções. Nesta viagem eu não dava a minha posição correcta, quando dava uma posição já a tinha passado por uma determinada margem, e o meu grupo de apoio tinha conhecimento dessa margem, daí que eles soubessem sempre onde eu estava.


Como era o seu dia-a-dia a bordo?

A bordo não há dias normais. Em sítios de muita navegação e junto à costa era muito complicado dormir, porque a segurança tem de estar acima de tudo, até do sono e da fome. Às vezes era necessário ficar uns dias sem dormir, e come-se só quando é possível e aquilo que é possível. Às vezes preferia sair um ou dois dias da rota, e ir para mar aberto, onde há mais segurança, para poder descansar.

Quando está bom tempo dá para cozinhar, e eu ia pescando. Usava sempre duas linhas de corrico, apanhava alguns peixes, quando podia arriar um aparelho às vezes apanhava um peixe de fundo. É que fazia o meu pão, fazia sopa… Em relação à água, tinha um dessalizador a bordo, que garantia sempre água suficiente para a minha alimentação e higiene.

Não nos podemos esquecer que, numa viagem de solitário, não posso ser apenas velejador. Tive de ser também cozinheiro, electricista, mecânico…Tive de aprender também a trabalhar com o computador, muito importante na comunicação com o mundo.


E quando atracava num porto, quais eram as suas preocupações?

A primeira era colocar o barco num local seguro. Depois, tratar da documentação necessária junto das autoridades, quer a minha quer a do barco. Por vezes era preciso também diligenciar alguma pequena reparação, o que eu fazia de imediato, pois se por acaso fosse preciso sair com alguma urgência tinha a certeza que o barco estaria pronto.


Sentia preocupação em conhecer os lugares, as culturas e as pessoas dos sítios por onde passava?

Sim, procurei sempre esse contacto, e também falei muito dos Açores nos sítios por onde passei. Uma das minhas preocupações foi também tentar saber até onde tinham chegado os açorianos; procurar gente dos Açores em todos os sítios por onde passei. Encontrei-os no Uruguai, no Brasil, mas também em outros locais. Por exemplo, na Samoa Ocidental encontrei a família Silva, descendentes de açorianos, gente que deverá ter chegado ali na baleação.


Ouvia música a bordo?

Sem dúvida, e uma das preocupações que tive foi a de recolher a música tradicional dos sítios por onde ia passando, mas gosto muito da nossa música, das nossas filarmónicas e dos nossos grupos folclóricos.

O único cd que levei comigo foi o da Sociedade Filarmónica Unânime Praiense, que gostava muito de ouvir de vez em quando.

Na minha chegada, tinha muita vontade que estivessem presentes filarmónicas, como aconteceu, pois acho que era também o momento ideal para homenagear as nossas bandas. Isto que temos aqui não existe em mais lugar nenhum do mundo. Tudo o que se possa fazer e dizer no sentido de engrandecer o trabalho que é feito por estes músicos deve fazer-se e dizer-se. Como referi em muitos dos sítios por onde passei, nos Açores não há festa sem filarmónica, e não há nenhuma família açoriana que não tenha pelo menos um elemento a tocar numa filarmónica.


Quando se deparou com a recepção que teve no Pico, o que é que sentiu?

Não se consegue descrever. Penso que mostrou que esta viagem disse muito a muita gente. Muitos viajaram comigo pelo mundo fora, como já disse, e o excepcional programa de rádio feito aos sábados a partir da Antena 9 foi fantástico.


Quando chegou confessou-me que estava cheio de vontade de ir pescar no Guernica, o seu barco de pesca. Já foi?

Já fui, e já que falamos de pescas, deixe-me dizer-lhe que nestes dois anos a situação do sector piorou, segundo o que me apercebi. Cada vez há menos peixe, os preços em lota não acompanham o aumento dos custos… Creio que tem de haver mais algum cuidado com as pescas nos Açores porque podemos correr o risco de haver barcos e não haver peixe.


Nestes últimos meses tem estado muito ocupado. O que tem feito desde que chegou?

Muitas coisas, sobretudo para reorganizar a minha vida, em terra e no mar. O Hemingway está varado e a sofrer reparações, precisa de um mastro novo e de uma série de equipamentos.

Estou a escrever um livro, o que me tem tomado algum tempo. Este livro vai tratar desta segunda viagem, referindo também alguns aspectos da primeira. Esta ideia já tem muitos anos, e eu já tinha algumas coisas escritas. Entretanto, também fui escrevendo na viagem. O lançamento depende agora da editora, o meu trabalho está quase concluído.


Podemos esperar uma terceira viagem de circum-navegação em solitário?

Mais viagens destas não. Devemos ter consciência de que tudo na vida tem o tempo certo. Creio que já fiz aquilo que tinha que fazer nessa área. Posso vir a fazer algumas viagens mais pequenas apenas.


Então o que é que vai fazer no futuro?

Vou pescar!


O Genuíno já passou por muitos sítios… Diria que a Horta é a cidade mais marítima que já conheceu?

A Horta é, de facto, muito particular nesse aspecto. Não há um Peter noutras cidades, e não é por acaso que isso acontece. Claro que a baía e as condições geográficas são muito importantes para essa condição marítima desta cidade, mas a Horta não é só o porto; é também as pessoas. Sobretudo a convivência e a forma acolhedora com que os faialenses receberam os que por aqui passaram no passado fizeram com que a Horta tenha a dimensão que tem hoje a nível mundial. O nosso porto e marina são conhecidos por todo o mundo. Quando se fala na Horta na Austrália, muitas pessoas sabem onde fica.

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